Ao subir o morro por ruas estreitas e irregulares, Merece cumprimenta os companheiros de ocupação: um rapaz de boné e tatuagem nos braços, duas garotas que mexem nas bombas de uma caixa d'água que abastecem suas casas, a dona de uma vendinha... No alto do morro, me explica que costumava jogar bola com os meninos em um campo improvisado no chão de terra. Hoje uma igreja evangélica neopentecostal parece vigiar as famílias que vivem ali.
A ocupação Esperança começou a ser formada em agosto de 2013 quando famílias incapazes de pagar alugueis cada vez mais caros ergueram seus barracos em um terreno abandonado por uma empresa de cosméticos da região. Criaram uma associação para lutar pela regularização fundiária junto à prefeitura. "É, eu sou vizinho do Silvio Santos", conta Merece e aponta para o horizonte onde antenas de televisão marcam os estúdios do SBT. "Ele bem que podia dar uma força para a gente." Em resposta à reportagem, a prefeitura de Osasco informou que classificou o terreno como de interesse social e está reunindo recursos para comprá-lo da empresa KJ Kady Jacqueline Ltda. A ideia é que as cercas de 500 famílias que vivem lá depois reembolsem a prefeitura.
Três anos antes do nascimento da ocupação, Manuel Messias levava uma vida completamente diferente. Nas categorias de base do Botafogo, o zagueiro nutria a esperança de deslanchar no futebol profissional depois que um olheiro o descobriu aos 16 anos no União Palmeirense, de Alagoas, e o levou ao Rio de Janeiro. Em seu age como jogador, chegou a treinar no elenco principal com o técnico Joel Santana, mas deixou o clube antes de realizar o sonho de se profissionalizar, o que só aconteceria no Cassimiro de Abreu, pequeno clube de Montes Claros (MG). De lá passou pelo Cotia-SP, Operário-MT e Peruíbe-SP; tentou jogar o Paulistão no Bragantino, mas acabou dispensado antes de entrar em campo: uma trajetória que pouco difere da média dos cerca de 30 mil jogadores de futebol do Brasil. No teto do barraco vizinho, ele estende um punhado de pares de chuteira multicoloridas para secar ao sol. Acaricia os cachorros que adotou depois que os encontrou abandonados. Um deles se chama Corinthians. Todos comem o que sobra das refeições da família. Acaricia o topo da cabeça do filho Hiago, de cinco anos, que Merece afirma que será goleiro.
Nas divisões inferiores do futebol, viveu um inferno interior não apenas pela falta de condições ideais de trabalho e salários atrasados, mas também pelo baque do imponderável. Perdeu o pai assassinado e a mãe, vítima de um AVC. Envolveu-se com drogas lícitas e ilícitas, desenvolveu sintomas de depressão e caiu em um abismo do qual só saiu com o apoio da igreja e do futebol. Passou o último ano longe da bola, se tratando e ajudando no desenvolvimento da comunidade. Ajudou a montar os barracos dos vizinhos, trocando paus e sacos de lixo por paredes de madeirite. Ajudou a debelar o fogo que os consumiu depois em uma noite de setembro de 2016. Capinou terrenos e montou sua casa a base de doações que recebeu de amigos. Foi por causa de sua atuação comunitária que o jogador recebeu seu apelido, que é também uma promessa.4
Dentro da casa, um quadrilátero de tábuas de compensado encimado por um teto precário e guardado por uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, ele apresenta a família: Edilene, a esposa de 24 anos que veio de Pernambuco contra a vontade da família, Lorran, o primogênito de sete anos que participa das aulas de capoeira na ocupação, Hiago, o goleiro, Hael, o bebê de dois anos, e Hiorrane, de seis meses. À noite, a família se aperta em duas camas que ocupam quase o cômodo inteiro, entre um guarda-roupas e televisores antigos; de dia, busca formas de evitar a fome. Depois de ajudar o Penapolense a escapar do rebaixamento da série A2 do Paulista, fazendo até um gol em clássico contra o Linense, Merece recebeu um aperto de mão, um tapinha nos ombros, mas não o salário de R$ 5 mil prometido pelo clube. Ele conta com esse dinheiro para reformar o barraco, cujo piso cedeu sob a pressão da geografia do morro, e colocar comida no prato das crianças. Quase um mês e meio após o fim da participação do Penapolense no Paulista, o clube depositou metade do salário de Merece, e prometeu pagar a outra metade no mês que vem.
Enquanto esse dinheiro não chega, a família segue sonhando com dias melhores e dependendo da solidariedade da comunidade para se alimentar. Amigos, vizinhos e o Movimento Luta Popular costumam viabilizar doações para os filhos do jogador. De acordo com a advogada e militante Irene Guimarães, Merece é um dos moradores mais queridos da comunidade e um dos mais engajados nos mutirões da ocupação, mesmo quando a vida de atleta o leva a passar meses fora em campeonatos. Ao posar para as fotos que ilustram essa reportagem, o zagueiro abraça os filhos, agradece a oportunidade de contar um pouco sobre sua vida e brinca que o momento pode marcar uma guinada em sua carreira.
"Quero falar com você daqui a um tempo quando eu tiver um contrato e uma casa melhor", ele sorri. "Vamos fazer um antes e depois." Mesmo aos 27 anos, uma idade alta para quem ainda não vingou com a bola nos pés, o jogador sonha com tudo que o futebol pode lhe dar. Ele acha que merece. Ninguém acha que não.