Um dos maiores infectologistas do país recebeu alta de Covid-19 há pouco mais de um mês, depois de passar cinco dias internado — sem tomar drogas experimentais. Mauro Schechter, professor-titular da UFRJ, diz ter exigido o mesmo tratamento que ele teria dado a seus pacientes.
— Eu respeito a ciência — disse, ao explicar por que rejeitou terapia com cloroquina. Em entrevista, Schechter conta como se sentiu durante a doença e como a enfrentou.
Como foi contrair Covid-19?
Horroroso. Eu sabia que ia adoecer, porque estive em fevereiro nos EUA na casa do meu filho que também é professor de doenças infecciosas, na Universidade Emory, em Atlanta. Saí da casa dele num domingo, para encontrar amigos em Nova York, dois dias depois ele me contou que estava com Covid-19. Voltei para o Brasil e fiquei direto em casa isolado, sabendo o que estava por vir. Algumas semanas depois, comecei a ficar doente, mas fui enrolando.
Eu estava bastante cansado e estava sendo irresponsável — além de prepotente, como todo médico — até que eu pedi um oxímetro para minha assistente e fiquei em casa até a hora que vi que era uma irresponsabilidade completa continuar. Eu estava muito hipoxêmico (sem oxigênio no sangue) e fui para o hospital.
Por que demorou se sabia da perspectiva?
Tem uma característica interessante da Covid-19, que é a pessoa não sentir a falta de ar, embora esteja muito hipoxêmica, e eu passei por isso. Um conselho que eu dou para paciente com Covid-19, quando me ligam agora, é: compre um oxímetro. Você pode medir, várias vezes ao dia, se baixar de 94, vá para o hospital. Em condições normais em que a pessoa estaria “aff, aff, aff!”, com Covid-19 ela poderia estar [hipoxêmica] não sentindo nada. Se é um cara com alguma lesão cardíaca, pode ter um infarto, sem estar sentindo falta de ar, porque a dispneia — a falta de ar que ele sente — não é proporcional à falta de ar que ele tinha no sangue.
Como foi seu tratamento?
Foi com o único tratamento que já existe: medidas de suporte. Não existe tratamento para Sars-CoV-2.
O senhor não entrou em teste clínico para antiviral?
Eu respeito a ciência. Não havia naquele momento, que eu soubesse, nenhum protocolo ocorrendo no hospital em que eu fui internado. Como eu respeito a ciência, eu faço comigo o que eu teria feito com os outros. Se eu pratico a medicina em que eu acredito — baseada em ciência —, o que prescrevo para os meus pacientes vale para mim também.
Quando a pessoa que me acompanhava perguntou se eu queria tomar cloroquina, respondi: “você me respeite”. Era um médico que me conhece bem. Ele perguntou meio rindo, meio sério.
Outros médicos estão tendo cautela com essa droga?
Não. Desde que começaram a usar cloroquina na Covid-19, escrevi várias vezes para amigos dizendo que eu aposto que os estudos bem feitos com cloroquina — aqueles randomizados, duplo-cegos e controlados por placebo — não mostrarão eficácia, particularmente para cloroquina com azitromicina. E, se os estudos tiverem poder estatístico, em alguns subgrupos apostei que terá um excesso de eventos colaterais graves e óbitos.
Agora, se isso acontecer, quem vai pedir desculpa às famílias das pessoas que usarem esses remédios? Todas as sociedades científicas nacionais e internacionais estão dizendo: não usem cloroquina contra Covid fora do contexto de pesquisa.
Existe uma piada dizendo que a diferença entre Deus e o médico é que Deus não acha que é médico. O médico não está acostumado a fazer nada e se sente obrigado a fazer alguma coisa. Ele estudou medicina para tratar e curar pessoas. É difícil admitir para si mesmo, dizer para o paciente “não há nada a fazer, fora te apoiar”. E olha que neste caso existe muita coisa que pode ser feita como apoio.
O que o deixou desconfiado com a cloroquina?
No caso da Covid-19, porque ela não é um antiviral estrito. Ela tem ação inespecífica, porque altera o pH, a acidez do meio. Teoricamente ela pode modular a resposta imune, mas não está atacando o vírus diretamente. Por ter ação in vitro (em tubo de ensaio), a cloroquina foi testada contra vários vírus — Sars, Mers, dengue, ebola, HIV... — e não funcionou contra nenhum. O passado da cloroquina é muito ruim: funciona in vitro, mas não em seres humanos.
O editor do Jama [periódico da Associação Médica Americana] recomenda aos médicos — e a seus advogados — que registrem muito bem, em todos os prontuários, que explicaram bem a todos os pacientes que não há dado sobre eficácia da cloroquina, mas que os efeitos colaterais são muito bem conhecidos. Preparem-se para as ações judiciais que virão.
Os médicos brasileiros estão preparados para isso?
Os médicos desconhecem o processo [da pesquisa clínica] e são mal preparados. E isso não é só o brasileiro. É a formação médica em geral, que não nos permite compreender como se mostra que uma droga é eficaz. Eu também não fui formado para isso, aprendi porque participo do desenvolvimento de drogas e vacinas contra HIV e hepatite, há mais de 30 anos. Na primeira reunião de que participei sobre isso, eu não sabia o beabá de pesquisa clínica.
O senhor deposita esperança em algum medicamento experimental para Covid-19?
A única droga a qual realmente se acredita na comunidade científica internacional que possa ter algum impacto antiviral contra a Covid-19 é o remdesivir, e mesmo assim o otimismo não é enorme. Vale a pena testar. É uma droga desenvolvida para ebola, que não é isenta de efeitos colaterais, mas tem uma chance. Os estudos estão andando.
Existem outras intervenções que são mais para modular resposta imune. Como o plasma [de pacientes convalecentes], imunoglobulina, IL-6... Enfim, tem várias coisas, e elas têm que ser testadas. Se der errado, não será grande surpresa, mas se der certo também não. Já a cloroquina é diferente: se der certo seria uma grande surpresa. Dar errado é o que é esperado.