Quando tinha 33 anos, o paulista Roque Quagliato deixou para trás a confortável vida de usineiro que levava em Ourinhos, no interior de São Paulo, para tentar a sorte como pecuarista no meio da selva amazônica.

O destino era Sapucaia, na região de Xinguara, a 600 quilômetros da capital do Pará, Belém. Era 1973, e na época o governo militar incentivava a migração para a Amazônia. Roque subiu de barco pelo rio Araguaia e abriu picadas na mata para conhecer as terras que estavam à venda. “Minha família queria ampliar os negócios com a pecuária”, diz ele. “Fui lá ver que oportunidade havia no Norte.”

Na época, para a maioria dos empreendedores, tal aposta soava como loucura. A selva era distante, cheia de mosquitos e carente de infra-estrutura. “Muita gente veio me dizer que não faltavam lugares melhores em Goiás e Minas Gerais”, diz ele.

“Mas o preço da terra no Pará era menos da metade do que em outros estados.” Hoje Roque Quagliato é conhecido entre seus pares como um desbravador e seu negócio é tido por eles como um exemplo. Ao longo de 30 anos, transformou aquelas terras no meio do nada no maior complexo de pecuária de corte do Brasil. Roque e seus irmãos Fernando, Francisco e Luiz controlam o grupo Quagliato, cujo plantel soma mais de 200 000 cabeças. Cerca de 150 000 delas estão em oito fazendas no sul do Pará.

Na cadeia produtiva da carne, os Quagliato estão para a pecuária de corte assim como José Batista Júnior, dono do Friboi, o maior frigorífico do país, está para a indústria da carne. Seus bois abastecem as gôndolas de grandes redes de supermercados do país, como o grupo Pão de Açúcar, que busca no Pará 12% da carne vendida em suas lojas. 

Para ter uma idéia do que representa o rebanho dos Quagliato na história recente da pe cuária, basta compará-los a Samir Jubran. Ele foi chamado de rei do gado nos anos 90, quando seu rebanho chegou à marca de 150 000 cabeças. O grupo Quagliato tem 33% a mais do que isso.

As propriedades dos Quagliato na região amazônica somam 85 000 hectares — o equivalente a metade da cidade de São Paulo — e parte do sucesso do empreendimento está justamente na localização. “As chuvas abundantes e as altas temperaturas equatoriais formam um ambiente privilegiado para o gado”, diz Fabiano Rosa, da Scot, consultoria especializada em pecuária. “Os pastos cultivados com capim ficam viçosos o ano inteiro e garantem alimento farto.” Coube aos Quagliato erguer a infra-estrutura. “Como eles estavam no meio do nada, transformaram as fazendas em verdadeiras minicidades”, diz o pecuarista Luiz Eduardo Batalha, franqueado da rede de fast food Burger King em São Paulo.

Batalha é um dos maiores criadores brasileiros de gado red angus e fez negócios com a família Quagliato, que cria nelore, para o cruzamento das raças. Batalha diz ter ficado boquiaberto ao conhecer a Fazenda Rio Vermelho, a mais antiga no Pará.

A organização é impressionante”, afirma. Nas propriedades há ambulatório, posto dentário, alojamento para os empregados, escola de ensino fundamental e marcenarias. “Os Quagliato não são apenas os maiores pecuaristas”, diz Lucio Cornachini, diretor da Lagoa da Serra, maior empresa de inseminação artificial da América Latina, subsidiária da holandesa Holland Genetics. “O rebanho deles também está entre os melhores.” Há oito anos o grupo aderiu a um programa de melhoramento genético para raças de corte, desenvolvido pela Lagoa da Serra.

O programa identifica os touros com os melhores genes e passa a utilizar seu material genético para inseminar fêmeas cadastradas. As crias são regularmente monitoradas e as novas gerações de touros são novamente testadas, num processo contínuo de aperfeiçoamento da raça. Fruto de uma sucessão de gerações, o touro Absoluto, um dos animais dos Quagliato, atingiu padrões elevados e hoje é um reprodutor comercial. Roque incorporou à rotina das fazendas tudo o que ele aprendeu nesse e em outros programas voltados para o gado. Mais da metade das 60 000 vacas do rebanho é inseminada — um percentual altíssimo, comparado à média nacional, de apenas 7%.

Os cuidados com a sanidade e a alimentação dos animais são rigorosos. Segue-se um calendário de vacinação e são realizados exames periódicos nos pastos para monitorar o nível de nutrientes. O que faltar é garantido com suplementos minerais.

O rebanho fica solto no pasto, dividido em retiros, espécie de minifazendas dentro de cada fazenda. São 50 retiros com cerca de 3 000 animais cada um. O resultado de todos esses cuidados aparece no aumento da produtividade. O índice de natalidade no rebanho dos Quagliato, por exemplo, beira os 90%. Isso quer dizer que, de cada 100 vacas prenhas, em média 90 dão cria a cada ano.

O resultado é muito acima do registrado na maioria das fazendas brasileiras, de 60 para cada 100. Os bezerros também ganham peso em menor tempo. Na maioria das propriedades brasileiras o boi é vendido para o frigorífico aos 4 anos, pesando 16 arrobas. N as fazendas dos Quagliato o animal está pronto para o abate com 3 anos, quando pesa cerca de 19 arrobas. Como o rebanho se multiplica e engorda mais rápido, os Quagliato conseguem ter um percentual maior de bois em ponto de abate — cerca de 28% do rebanho por ano, enquanto a média do Brasil é 19%.

Nada na figura de Roque faz transpare cer que ele seja um empresário à frente de seus pares. Quase sempre de camisa quadriculada e jeans, parece mais um simples boiadeiro e não sai de casa sem colocar o chapéu de abas largas. É presença quase garantida nos leilões do setor, mas raramente aparece em eventos sociais. “Não gosto de exposição”, diz.

Os amigos o descrevem como um homem viciado em trabalho, ríspido pelo excesso de franqueza e de hábitos comedidos. Fernando, seu irmão mais velho, responsável pelos negócios na Usina São Luiz, em Ourinhos, é bem diferente. Com quase 80 anos, o primogênito dos Quagliato é sofisticado, urbano e acostumado a circular nos bastidores da política local. Gosta de roupas de grife e de viajar pelo exterior. É casado com Marly, prima da rainha Silvia, da Suécia. Entre os encontros de família dos quais participou estão as bodas de prata da rainha e do rei Carlos Gustavo, em 2001, ocasião em que uma festa para nobres ocupou um castelo medieval e o palácio real em Estocolmo.

Em contraste com o modelo de negócios capaz de colocá-los entre os pecuaristas mais eficientes do mundo, os Quagliato são apontados como empresários que cultivam hábitos condizentes à época do Brasil Colônia. O maior deles seria a questão trabalhista. Há 20 anos a família é acusada de exploração do trabalho escravo pela Comissão Pastoral da Terra, entidade vinculada à Igreja Católica que monitora a violência no campo. “Na produção, os Quagliato são profissionais e modernos como poucos”, diz o frei francês Henry des Roziers, da Pastoral em Xinguara. “Mas se comportam como coronéis do século 19 no que diz respeito à legislação trabalhista.” De acordo com a Pastoral, os trabalha dores terceirizados dos Quagliato são submetidos a condições desumanas, como dormir ao relento e não receber remuneração.

As denúncias não deram em nada até o governo FHC reconhecer a existência de trabalho escravo no Brasil e criar um grupo para identificar e multar os infratores.

“Autuamos os Quagliato várias vezes”, diz Marcelo Campos, assessor da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho. “Quem dera os trabalhadores deles tivessem o mesmo tratamento dos bois.” O governo Lula fechou o cerco aos reincidentes e criou no ano passado uma lista negra, com pecuaristas que não podem receber financiamento público até que sua situação seja regularizada. Metade dos 120 criadores listados é do Pará e na relação constam os nomes de Roque e de Fernando. Os Quagliato se consideram vítimas de um mal-entendido. “No passado ninguém dava atenção às leis trabalhistas no Pará. Isso não era correto, mas era a regra do jogo, e por isso não assinamos a carteira de todos os temporários”, diz Roque.

“Mas não assinar a carteira de um temporário não faz de ninguém um escravagista.” Segundo Roque, a situação dos trabalhadores terceirizados está regularizada e ele afirma não saber como o seu nome e o do irmão foram parar na lista negra. Na avaliação de especialistas do setor, a questão trabalhista é um dos gargalos críticos do agronegócio brasileiro.

“Poucas fazendas conseguem seguir a legislação trabalhista ao pé da letra porque ela é inadequada à rotina rural”, diz Miguel Cavalcanti, da consultoria BeefPoint. “É preciso criar uma lei específica para o campo e deixar mais claro que critérios definem a prática de trabalho escravo.”

Outra preocupação crônica dos Quagliato é a febre aftosa. O Brasil é o maior exportador de carne do mundo por causa de seus rebanhos sadios, mas no Norte o índice de vacinação é baixo e a região não é considerada totalmente livre da doença.

Essa situação reduz o preço da arroba e limita os lucros e o mercado de todos os pecuaristas — inclusive dos Quagliato, apesar de eles vacinarem o gado. As restrições para a exportação a partir da região são tão rigorosas que inviabilizam a venda internacional. A mais recente dor de cabeça do grupo é de caráter ambiental.

De acordo com o estudo Causas do Desmatamento na Amazônia, do Banco Mundial, uma intensa migração de criadores para o Norte a partir da década de 90 transformou a pecuária na maior causa de derrubada de matas na Amazônia.

A atividade passou a ser malvista e combatida por organizações não-governamentais internacionais que defendem o meio ambiente. “Existe muita pressão velada contra quem investe na Amazônia”, diz Roque. “Mas a pecuária está lá para ficar, porque temos potencial para crescer muito mais.”